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Cronicas-->Cristal -- 28/10/2023 - 00:14 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Não gosto quando entro nestes estados diferentes; eu simplesmente entro neles, como quando se acorda num dia nebuloso: simplesmente se acorda e a neblina domina tudo, todas as luzes são baixas, os contornos são indefinidos. Nestes tais estados, o mundo não se define, a sombra parece que ganha um manto e a vida segue opressa e distante. Isso gera um descompasso entre o que existe e o que vai dentro, daí a dissociação absurda que acomete meu espírito quando ainda tento compreender qual o estado de todas as coisas e elas simplesmente não são observáveis--como se tudo o que é observável fosse apreensível.

O mundo apreensível passa por tamanhas modificações que quase tudo me escapa, quase tudo corre entre os dedos e quase tudo segue a linha dos objetos que se apreendem, mas ainda não se dizem existentes, há um quê de vacuidade e de indiscernível no olhar das pessoas que passam por mim, daí a sensação de esquisitice, de não-conformismo, daí eventualmente a sensação de sobra ou de inadequação que predomina em meus sentimentos.

O sabor metálico predomina nos alimentos, nas frutas, no pão desenxabido de um café da manhã que ainda faço com minha companheira de jornada—e que conhece estas alternâncias absurdas como um molho de pimenta que cria mais gosto no pastel de vento da feira. Eu pego o pão e sinto sua tessitura e imagino que aquilo foi uma plantação tocada a mãos úmidas de suor e colhida desde tempos imemoriais. O pão, o azeite, o vinho seco, a manteiga de leite de cabra. O arroz nosso de cada dia. O café, essa beberagem escura, plena de potência de existir e de acelerar o pulso em nossa memória justa que nos cabe, aqui, neste mundo de incertezas e angústias. O medo move o mundo, em todos os níveis e castas. Minha companheira sabe em que penso e age com naturalidade, consciente de que o que se representa talvez seja uma similaridade que engana os sentidos e forja a interpretação deles mesmos em outros sentidos ocultos à nossa realidade mesquinha. Ela sabe de minhas vicissitudes e de minhas sombras agudas e graves. Ela sabe que, estando assim, preciso justamente do tempo e do tato para firmar minha posição no centro de meu mundo que se opõe ao mundo objetivo em ruína anunciada; daí cravo as mãos na mesa, ou na cadeira, ou em minhas coxas e espero que ela volte (a humilde realidade), espero que o silêncio passe, esse silêncio que anuncia as mudanças que ora se ajustam e aperfeiçoam a existência mesma.

A luz bruxuleia no cômodo da cozinha que faz fronteira com nossa sala de jantar, uma vez que tomamos o café na copa. Eventualmente deve ser uma lâmpada que fraquejou ou a luz mesma que na sua essência vem em pacotes, luz em informação que enche nossa retina de impressões e cores que incendeia um canto da pia onde jaz uma garrafa de vinho seco, de marca conhecida e origem platense. O café ainda predomina, mas ela ainda está inebriada pelo vinho de ontem. Dizem que os pratos amanhecidos assim como os vinhos têm mais sabor e consistência, daí ela se serve de um gole de existência e lume, ela coloca o lábio superior na taça de vinho, seu olhar não transparece nenhum desejo secundário e nem um ponto de paixão, apenas a língua saboreia o amadeirado, o frutado, o almiscarado. Ela e sua língua lasciva e seu olhar frio e de reflexo esmeraldino me lembram de que a humanidade, lúbrica, sobrevive hoje de passados que nunca poderá negar.

Na minha escrivaninha mora um globo de cristal desses que a gente compra em alguma feira mística; pois bem, o globo reflete de maneira invertida o mundo, apequenado em suas entranhas, mas pleno de luz em potência e força, como um pequeno planeta intumescido e virado, as pernas onde há braços e braços onde haveria pés. Meu pequeno glóbulo de chamas, eu o denomino de hoje em diante, pois sim, meu pequeno ser de luz coagulada há bilhões de anos em plena rocha, cristalizado por forças descomunais e que hoje, impávido, reflete aqui e ali uma cena de lassidão, ou de raiva, ou um vinho de boa rolha que escorre pelos lábios da musa do outro lado.

--Você, hein, quando fica assim ensimesmado e taciturno, dá até medo.

Mesmo eu tenho medo, porque um turbilhão me habita e se eu não o coloco em papel, há de me tragar uma força inaudita, um buraco negro de silêncio ainda mais aprofundado. Ela sabe disto, eu sei que ela sabe, o globo de luz também me conhece, a escrivaninha guarda o pouco que ainda consigo expressar disto que sinto.

Lá dentro do mundo inverso algum movimento faz lembrar um sonho, e a mão dela pousa na minha. É a deixa que o quartzo precisa para se virar com muito pejo, o que ele sabe fazer com muito gosto.

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